No passado dia 25 de Outubro realizou-se, em Ferreira do Zêzere, a cerimónia de inauguração da Fundação Maria Dias Ferreira, entidade responsável pelo desenvolvimento de várias actividades de âmbito social e cultural no Concelho, e com a qual me sinto grata de poder colaborar.
O evento contou com a presença de vários ilustres convidados e foi notavelmente apresentado por João Paulo Sacadura, personalidade cativante que tive a feliz oportunidade de conhecer pessoalmente. Também se fizeram ouvir os versos de Keil pela voz da encantadora soprano Isabel Alcobia, acompanhada ao piano pela exímia Carla Seixas, e igualmente encenados pelo já experiente grupo tomarense “O Contador de Histórias”.
A primeira parte da cerimónia foi marcada pela presença de vários oradores: João Luís Petra (Projecto de Reabilitação da Quinta de São José), Susana Carneiro (Projecto Social “Destaca o melhor que há em ti”), Cátia Salgueiro (Projecto Salvaguarda), Paulo Alcobia Neves (Projecto Salvaguarda e Portal Ferreira Digital) e Paulo Archer de Carvalho, que simpaticamente concordou em apresentar, juntamente comigo, o livro “Salvaguarda e Valorização de Bens Culturais do Concelho de Ferreira do Zêzere: Identificação, Catalogação e Diagnóstico”, lançado oficialmente nesta data. A obra, de que sou autora, foi patrocinada integralmente pela Fundação Maria Dias Ferreira, pelo que as minhas palavras de préstimo se dirigem aos principais instituidores da referida entidade, o Sr. Eng.º José Afonso Oom Ferreira de Sousa e sua excelentíssima esposa a Sr.ª Dr.ª Maria Isabel Nunes Costa Ferreira de Sousa.
Mas, voltando ao amigo Paulo Archer, antigo Professor dos meus tempos de formação académica de que eu guardo grande saudade, este fez questão de me ofertar o seu texto de apresentação, na condição de o publicar oficialmente no jornal do nosso Concelho. E, como considero que a suas sábias palavras a todos vós devem ser transmitidas, interrompo pois o tema habitual das minhas crónicas, para vos presentear com o texto do erudito, que passo a transcrever nesta e na próxima crónica, dada a sua extensão.
“Compreender a Lembrar”
I. “ Um grande filósofo, Paul Ricoeur, pensou que no balanço entre a herança e a expectativa se cumpre o Ser e que a vida só na instável oscilação entre o sentido perspectivo e prospectivo sobre si mesma se vai alicerçando. Se o Santo Sócrates, de Erasmo, e Platão e Agostinho tivessem razão, cada um de nós, ou nós todos em conjunto, nada mais seríamos do que pedaço de tempo na escala quasi eterna do Kósmos e aí habitamos, no tempo, semente de eternidade, na bela linguagem poética na qual se exprimiam ainda os filósofos. Embora a nossa condição mortal seja bem certa – e seja conveniente dela não abdicar, porque não nos foi dado sermos deuses, nem darmos a outros a nossa servidão ou impor a sua –; embora seja um fio o horizonte que um dia se fecha nos nossos olhos, em certo sentido o desafio humano não tem fim. Buscamos a incerteza e inacabada verdade das coisas, buscamos uma verdade para a vida, que na aridez do tempo e na secura do espaço parece a vida não ter, porque nos parece fugir entre mãos, precisamente quando ou enquanto em nós a não encontramos:
"Não tenhas nada nas mãos Nem uma memória da alma"
Escrevia Ricardo Reis,[1] exausto de memória, por certo não se revendo numa pátria demasiado distante de si mesma, exangue de história, dilacerada pelos seus mitos, divorciada dum passado demasiado denso e grande para o corpo frágil e ressequido do presente que a trazia. No entanto, o mentor do paganismo de Pessoa reconhecia, noutro poema:[2]
"Antes de nós nos mesmos arvoredos Passou o vento, quando havia vento, E as folhas não falavam Do outro modo do que hoje"
O que é dizer, somos nós os legatários, os herdeiros da vida que só por ilusão temporal – a da nossa vida, a do nosso tempo – nos pertence e que, contudo, pertence na afirmação incessante do Ser. Somos nós os que vão no rio das coisas, intuíra o poeta,[3] por isso antecipamos o rio, sob forma de expectativa de nós mesmos: tudo quanto fazemos, lembramos, construímos, são já bocados de nós que se desprendem do mundo, e aí se repartem, no imenso mar onde quase todos os rios afluem, mar que evoca um perpétuo infinito em movimento, como pensou e sentiu Charles Baudelaire.[4]”
II. “A memória destrói e apaga tanto quanto constrói e aviva. Não é possível lembrar tudo, nem, na hipótese contrária mais radical, tudo esquecer. De facto, a memória é lembrança e esquecimento. Doutro modo seria impossível recordar, pela saturação da lembrança, pelo excesso de presenças a que conduz a abusiva inscrição de tudo na memória. Nietzsche, com inteira indignação, irritou-se com esses tempos em que tudo é histórico e já nada o é. Muitas vezes se diz, e com razão, que os povos felizes não têm história. Para quê memoriar, historiar, se já se é feliz? A memória, individual e social é, portanto, selectiva, restritiva e parcial. Ela quer reconstruir um percurso, calcar um trilho no meio da floresta para o encontro com o Passado. O tempo mantém essa capacidade erosiva de apagar o excesso de memórias, não necessariamente por serem as mais sossegadas ou desassossegadas, mas por serem insignificantes. O que a memória retém é o signo, isto é, o que colectivamente é significante, que produz (ou tem) sentido. E o sentido só se torna perceptível quando é, de qualquer modo, comunicado. Tinham por isso razão os pré-socráticos ao assinalarem que o homem é o animal que fala. A linguagem não é apenas o som de um corpo,[5] mas o som e a imagem de um Ser, aquele que tem autoconsciência da sua condição imaginante, pensante, falante. Com acerto, Heidegger pensou a linguagem como a casa do ser, é um abrigo-concha que lhe é próprio mas que está destinado a uma ultrapassagem linguística (Logos) e metafísica por si mesma. No sentido filosófico, a linguagem é a casa metafísica do ser.[6] O que quer isto dizer? Que é na busca linguística, comunicante, que a memória se revê e se projecta buscando um sentido do futuro. A memória aspira ao futuro. Qualquer investigação histórica está condenada, ao reestruturar uma certa semiologia que já fora organizada, a descobrir um bocado do tempo que a própria acção erosiva do tempo apagou ou esqueceu. De facto, só se pode evocar o que semiologicamente já existiu. O trabalho historiográfico, em grande parte depende dessa outra e anterior existência, que ele vai tentar documentar, analisar, interpretar. Mas só na medida da sua interpretação, o passado «volta», reaparece aos olhos do historiador. É preciso perder certa «consciência inocente».[7] Quem desprezar a dimensão hermenêutica e subjectiva da tarefa historiográfica, quem desvirtuar o carácter hipotético dos dados e o carácter teórico da sua construção mental, chega a lado nenhum: isto é, vai ao passado, mas de lá não consegue voltar com informação qualitativamente relevante.
Esse é o motivo, visto noutra perspectiva, pelo qual é impossível viver no passado ou no futuro. O saudosista e o utopista vivem na ilusão do tempo, ignoram que é no presente que o sonho se vive, como sonho, não como realidade. Representações do passado e do futuro entrechocam-se no presente, é certo, mas só aqui vivemos. Impossível viver no ido, pois a vida só faz sentido conjugada no presente, e o verbo (do) Ser não é, sob o ponto de vista histórico, transitivo: não sou eu quem foi quando estudo, por exemplo, uma comunidade nos séculos XVII ou XVIII. O historiador, por maioria de razão e «dever» profissional, também vive entre a herança e a expectativa. Mas é na especialidade (o lugar) e na temporalidade que enraíza o virtual e a historicidade. Doutro modo, a História seria árvore estéril, sem frutos.”
[1] Ricardo Reis, Odes, Lisboa, Ática, Obras Completas de Fernando Pessoa, 1970, 30. [2] Id. Ib., 51. [3] Id. Ib. 58. Guardo o poema com certa emoção. Por vezes iniciávamos as lições de História e Cultura Clássica por esta extraordinária invocação, provavelmente no ano em que a Ana foi nossa aluna pela I vez. [4] Ch. Baudelaire, Meditações, Coimbra, Alma Azul, 2007, 6. [5] Cf. G. Deleuze, Lógica do Sentido, São Paulo, Perspectiva, 2000 4ª, 187-88. [6] M. Heidegger, Que es metafísica?, Madrid, Alianza, Filosofia, 2003, 47. [7] Em sentido analógico: D. Schwanitz, Bildung (…), ed. port., Lisboa, Dom Quixote, 2005, 363.
[1] Ricardo Reis, Odes, Lisboa, Ática, Obras Completas de Fernando Pessoa, 1970, 30. [2] Id. Ib., 51. [3] Id. Ib. 58. Guardo o poema com certa emoção. Por vezes iniciávamos as lições de História e Cultura Clássica por esta extraordinária invocação, provavelmente no ano em que a Ana foi nossa aluna pela I vez. [4] Ch. Baudelaire, Meditações, Coimbra, Alma Azul, 2007, 6. [5] Cf. G. Deleuze, Lógica do Sentido, São Paulo, Perspectiva, 2000 4ª, 187-88. [6] M. Heidegger, Que es metafísica?, Madrid, Alianza, Filosofia, 2003, 47. [7] Em sentido analógico: D. Schwanitz, Bildung (…), ed. port., Lisboa, Dom Quixote, 2005, 363.
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