quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Regresso às Origens


Quando era pequena, os meus pais levavam-me à terra dos meus avós maternos. Isso acontecia no tempo das “Férias Grandes” e, nesse período sazonal, tinha a oportunidade de visitar amigos e familiares, todos esses membros amputados por largos meses de espera.

“Ir à Terra” significava, para mim, para os meus pais e para os meus avós – que entretanto haviam trocado os silêncios do Interior pelas andanças do Litoral –, um regresso às origens. Já a “Terra” em si tinha um nome: Vila Verde, povoação pequena, isolada no igualmente isolado Concelho de Ferreira do Zêzere.

No lugar onde a minha mãe nasceu não havia luz ou água e os caminhos eram de terra batida. No Verão, a poeira elevava-se da estrada, turvava o ar e colava-se aos matos, às casas e a mim, polvilhando-me a cara, as mãos e os pés. A consequência óbvia era a de ter de tomar vários banhos por dia, dentro de um alguidar de zinco que na altura me parecia enorme, tinha eu uns cinco ou seis anos.

Os meus avós eram pessoas simples, com poucos recursos, e a casinha onde tinham um dia morado era igualmente humilde, mas a mim transmitia-me uma sensação de segurança, apego e conforto, necessários a umas férias bem passadas. Chamava-lhe a “Casa dos Aranhiços”, pois estes bichinhos pernudos apropriavam-se persistentemente do espaço e era necessário corrê-los à força de vassouradas.

Mais tarde, chegou a instalação eléctrica e a água canalizada e, com isso, perderam-se os serões passados à luz da fogueira e do candeeiro a petróleo, bem como as idas à Fonte do Alqueidão para lavar a roupa. Esta rapidamente perdeu o cheiro a sabão, enquanto que a fonte, aos poucos, deixou de jorrar água.

Um dia, ao regressarmos à Terra, a velha estrada poeirenta havia também mudado. Mais elevada no terreno, cobria-a um manto negro e a “Casa dos Aranhiços” ficava agora dois metros mais abaixo, como se o solo a tivesse engolido. Os meus chinelos, que dantes ficavam cobertos de pó, serviam agora para rebentar as bolhinhas de alcatrão que se formavam na estrada sempre que fazia mais calor.
 
Mas a estrada nova não havia destruído os velhos caminhos. Da casinha da minha avó chegava à Capela de Nossa Senhora da Luz, onde a minha tia Natália ia todos os dias para ver se a vigila da lamparina de azeite se mantinha acesa. Chegava também ao mercado de Areias, que se realizava (e realiza) todos os Domingos, enquanto que os fiéis enchiam a Igreja de Nossa Senhora da Graça assistindo, em silêncio, à missa semanal. Cá fora, a profusão de cheiros e de cores, de sons e de imagens, animava regularmente a vida do pequeno povoado.

Mais tarde, já com dezoito anos, quando vim para ficar na aldeia dos meus avós, pude recordar tudo novamente. Era como se a poeira da Terra, que se me pegava ao corpo quando era criança, jamais me tivesse largado, por mais banhos que tomasse no velho alguidar de zinco.

Revisitando todos estes quadros da minha infância, pude constatar como tanta coisa se manteve inalterada e se cristalizou num lugar de tempo sem tempo. Talvez essa seja a razão que me tenha levado a querer saber mais, a querer saber o que se encontrava escondido atrás de cada recanto da minha memória. Estudei, e os meus estudos dediquei-os a Ferreira do Zêzere, à sua gente simples e às minhas origens que não renego e de que tenho orgulho.

Talvez seja essa a razão de querer contar aos outros a alegria que experimento quando revejo cada lugar, cada casa, cada templo, cada gesto. É o querer partilhar o quem, quando, onde, como e porquê de tudo isso. E é esse o “Olhar” que pretendo imprimir em cada uma das minhas crónicas, quando perscruto o “Património” ferreirense. È esta a sua razão de ser: explicar como é importante pensar o património como herança dos nossos avós, património esse que temos o direito e dever de salvaguardar, conservar e valorizar, de maneira a poder transmiti-lo às gerações futuras.


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4 comentários:

Anónimo disse...

Gostei do que li e do seu trabalho sobre os nossos lugares. Obrigado. É a diferença preservada que enriquece a nossa identidade, como fereirenses e no todo como portugueses.
jorge flores

Unknown disse...

Boa noite,

Gostei muito do seu texto, tenho uma casa em Gontijas e partilho as suas recordações de infância. Tudo mudou mas as raízes estão lá, e é para lá que queremos sempre voltar.
Jorge Ideias.

João Ramos disse...

Parabéns pelo excelente testemunho e pela forma emocionante com que descreves pedaços marcantes da tua história familiar. Documentos como este, permitem Honrar os antepassados, deixando uma visão presente e legado para o futuro. Muitos parabéns estimada Ana pelo excelente trabalho.

Ana Torrejais disse...

Gratidão querido João, gratidão. É sempre muito bom reencontrar quem se revê no nosso olhar e compartilha da mesma entrega sensibilizada pela salvaguarda do nosso patrimônio cultural.