quarta-feira, 29 de abril de 2009

Igreja de Nossa Senhora da Graça de Águas Belas

 
Ao centro da povoação de Águas Belas ergue-se a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Graça, antecedida pelo costumeiro adro no qual são realizadas as festas anuais em honra da padroeira. De acordo com Paulo Alcobia Neves, o templo foi construído entre 1894 e 1897, sob o patrocínio do banqueiro Conde de Burnay, pois consta que este nobre precisava dos votos dos aguabelenses para ser eleito deputado, tendo então contribuído com 50% do numerário necessário para a construção da actual igreja. Esta viria a substituir o primitivo edifício religioso, que se localizava na sede da antiga Vila de Águas Belas, e que já em 1758 é citado pelo pároco José da Mota Ribeiro, possuindo por esta mesma altura cinco altares: um da Senhora da Graça; outro do Espírito Santo; outro de S. Bartolomeu e Almas; o quarto de Nossa Senhora do Rosário e o quinto de Jesus. Do ponto de vista arquitectónico, a Igreja de Nossa Senhora da Graça apresenta-se como uma construção de carácter eclético, em que as marcas de inspiração clássica transparecem de forma tímida no arco de volta perfeita do portal principal. Possui planta longitudinal de nave única e cobertura em telhado de 2 águas, destacando-se do corpo central do templo dois volumes correspondentes às salas de sacristia que ladeiam a capela-mor. Na fachada principal foi adossada uma torre sineira, de marcada verticalidade, na qual se rasgam as linhas simples do portal principal, sendo todo este volume avançado em relação ao corpo central do edifício.
 
Pelo interior, e sobre a entrada principal, ergue-se um coro-alto, enquanto que do lado direito se desenvolve uma pequena câmara que funciona como baptistério, dotado da correspondente pia baptismal, provavelmente coetânea da época de construção do templo. O tecto do corpo central, bem como o da capela-mor, é madeirado em 3 planos, enquanto que o pavimento se encontra coberto por mosaico cerâmico. Por fim, acede-se ao altar-mor através de um arco cruzeiro de volta perfeita, alteado num lanço de três degraus.
   
O interior do templo é dotado de dois altares laterais, construídos em talha policromada, sendo o do lado do Evangelho dedicado a Nossa senhora do Rosário. Trata-se de uma belíssima imagem do séc. XVIII, de talhe erudito, e é muito provavelmente a ela que se refere o pároco José da Mota Ribeiro em 1758. Já do lado da Epístola, o altar é dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, imagem de produção recente. O altar-mor, obra seiscentista, é proveniente da antiga igreja, e nele se encontra a padroeira: Nossa Senhora da Graça, imagem de porte eclético, a qual, coroada, ostenta na mão um ceptro, símbolo do seu poder, e segura nos braços o menino Salvator Mundi, igualmente coroado. É esta imagem ladeada por duas esculturas representativas de Santo António com o Menino e de S. Francisco de Assis.
  
Na antecâmara do portal principal preservam-se, em nichos laterais, duas esculturas de pedra quinhentistas, provenientes da primitiva igreja, as quais ainda conservam vestígios de policromia. Representam S. Judas Tadeu (0.680m altura) e S. Bartolomeu (0.705m altura), cujo talhe rude e as proporções atarracadas denunciam a sua produção popular.
Para além destas, conserva-se na sacristia um Sto. António (0.730m altura) do século XVI, esculpido em pedra, e igualmente resgatado ao templo anterior. Do seu espólio ressalta ainda a magnífica custódia em prata dourada cinzelada, datada do século XVIII que, de acordo com Maria Emília Baptista, terá sido ofertada por uma piedosa fidalga do extinto Solar do Morgado de Águas Belas a qual, tendo-lhe morrido uma filhinha na flor da idade, resolveu fundir todo o seu ouro e assim mandar fazer esta preciosa peça. Para além da custódia, guardam-se várias peças de prata, de reduzido valor artístico, tais como uma cruz processional, os castiçais de uma banqueta, um cálice e várias jarras. Por fim, deve ser referido que, numa das últimas campanhas de intervenção, foi aplicado às paredes interiores do templo um silhar de azulejos de produção industrial, que dificilmente se enquadra no esquema decorativo original. Apresenta o referido silhar uma altura de 8 azulejos, em tons de azul e branco, os quais se repetem de acordo com um módulo de 2X2/2 unidades. É o tapete azulejar delimitado por um friso no limite superior e por cercadura no limite inferior. Conclua-se que o edifício está reabilitado e que recebe manutenção regular, pelo que, aparentemente, o estado de conservação do imóvel e do correspondente património integrado se encontra estabilizado.

A Arquitectura Religiosa Ferreirense


Define-se por Templo o lugar no qual é consagrado culto a uma determinada entidade mística, expressa geralmente na forma de um ícone ou imagem sagrada que a representa. Dessa forma, e numa concepção teológica da realidade, os conceitos de templo, imagem e culto permanecem indissociáveis, não se bastando a si próprios. Entre os fiéis, o templo é tido como “a Casa de Deus”, ou seja, a estrutura que acolhe a divindade e que, simultaneamente, exerce uma força securizante sobre a comunidade que para ela conflui, impedindo que esta se dissocie. Por essa razão, ocupa ainda um lugar central nos povoados rurais, definindo os ritmos sazonais próprios da sua existência pois, se o poder de integração da comunidade aldeã se exprime no modo como esta cuida das suas igrejas ou capelas, sempre que um determinado povoado ameaça desagregar-se o correspondente templo entra em igual trajectória decadente, chegando muitas das vezes à ruína. Dado o forte pendor rural do Concelho de Ferreira do Zêzere, não admira que os exemplares de arquitectura religiosa sejam ainda bastante numerosos nesta região. Ao todo, foram contabilizados 89 edifícios religiosos, dos quais 45 ainda se mantêm ao culto, 29 se apresentam arruinados ou irremediavelmente perdidos e apenas 15 fazem parte de outros conjuntos edificados, incluindo-se neste último grupo as pequenas capelas de edificação particular que se dispersam um pouco por todo o Concelho. No total, a freguesia de Areias é a que denuncia maior número de templos (21), seguindo-se Beco (14), Ferreira do Zêzere (12), Chãos (11), Dornes (10), Paio Mendes (7), Águas Belas (6), Igreja Nova do Sobral (4) e Pias (4).


No que se refere aos templos funcionais, a generalidade dos edifícios religiosos incluídos neste grupo destaca-se do conjunto das habitações do povoado pela sua brancura e altivez, sendo a verticalidade do templo acentuada pela torre campanária que, muitas das vezes, se ergue adossada à fachada principal. Aí repousa o sino, cujo repicar é altamente mobilizador, ritmando não só o quotidiano, mas igualmente o tempo de vida de cada um, ao fazer-se ouvir por ocasião de um nascimento (baptizado), casamento ou morte. Ao nível da cobertura elevam-se ainda uma ou várias cruzes, algumas das quais se mantêm iluminadas durante toda a noite, a par de agitados cata-ventos. Do ponto de vista estrutural, a maioria destes edifícios é constituída por paredes de alvenaria, rebocadas a cal e emolduradas por elementos de cantaria de natureza calcária; porém, recentemente têm vindo a ser reconstruídos a betão, total ou parcialmente, alguns destes templos. O traçado é geralmente simples, de linhas rectas e simétricas, que se desenvolvem a partir de um corpo central de planta longitudinal, destacando-se nos templos de menor dimensão o volume saliente da sala de sacristia que, pelo exterior, surge acoplada à capela-mor. O interior, frequentemente pouco iluminado, apenas adquire maior riqueza nas igrejas paroquiais, local onde geralmente se concentra o património móvel e integrado mais importante da freguesia. Nestes casos, o requinte arquitectónico aprimora-se, multiplicando-se as arcarias e as capelas laterais com os seus ornatos, as formas escultóricas insinuantes ou os tons vibrantes da nossa pintura ou azulejaria, a par de outros tantos rigores decorativos. Porém, nos templos mais modestos, vence o despojamento decorativo, das naves reduzidas e pouco iluminadas, sem adornos, enquanto que na parede fronteira, que serve simultaneamente de capela-mor, repousa a imagem padroeira, por vezes recolhida num retábulo modesto ou, nos casos mais simples, num pequeno oratório.


No que se refere aos templos disfuncionais, são incluídos neste grupo todos os edifícios religiosos arruinados, parcial ou totalmente desaparecidos e que, por essa mesma razão, já não mantêm a sua função cultual. Tal como já foi referido, foram contabilizados 29 edifícios nesta situação, faltando apurar a localização correcta de 14 templos, pelo simples facto de actualmente já não existirem quaisquer vestígios da sua estrutura. Por fim, no terceiro e último grupo em que é possível classificar a arquitectura religiosa ferreirense, são incluídos todos os templos de edificação particular que, na generalidade dos casos, surgem na dependência de importantes quintas e/ou solares. Quando tal ocorre, o edifício religioso ocupa frequentemente parte da fachada principal do edifício habitacional, mas pode igualmente surgir como uma construção independente. Dos 15 templos contabilizados neste grupo, apenas 6 ainda conservam a sua função cultual, tendo sido mesmo reabilitados; os restantes, para além de já não servirem ao culto, encontram-se por vezes arruinados e os seus espólios deslocados.

Procissões e Romarias

O cortejo religioso, consagrado na forma de procissão ou romaria, encontra-se intimamente associado ao culto particular de uma imagem e pode revestir inúmeras particularidades na forma como é concebido. Característica comum é o facto de se dirigir a uma entidade mística, podendo-se afirmar que, a partir do momento em que se desenvolveu, na Antiga Lusitânia Ibéria, uma prática iconolatra, terão surgido as primeiras deambulações sagradas.
Este costume ter-se-á mantido ao longo dos séculos, intensificando-se na Idade Média já sob a égide do Cristianismo, assumindo o cortejo religioso um carácter expiatório, através do qual se procuravam banir as doenças, epidemias e enfermidades várias, sempre que estas ameaçavam um determinado povoado. Eram as designadas “procissões de penitência”, de que é exemplo a célebre “procissão dos passos”, realizada anualmente no dia de Sexta-feira Santa. De acordo com o P.e Miguel de Oliveira, esta prática religiosa, que chegou aos nossos dias, foi primeiramente instituída em Lisboa na segunda metade do século XVI, tendo-se expandido a partir daí a todo o Reino.
De facto, todas as igrejas paroquiais do Concelho de Ferreira do Zêzere conservam o seu Senhor dos Passos, imagem de roca geralmente de grandes dimensões, vestida com um manto púrpura cingido por cordão e cuja cabeça é recoberta por uma farta cabeleira de fios verdadeiro. O efeito cénico/dramático é uma das principais características desta procissão, que é reforçada pelo carácter realista que transmite a própria imagem: Cristo, coroado de espinhos e no extremo das suas forças, transporta a cruz com que irá ser crucificado; o joelho em terra, o corpo coberto de chagas e a cara martirizada e lívida contribuem para acentuar a imagem do martírio e sofrimento de Jesus.
Para além da Procissão dos Passos, muitas das povoações ferreirenses comemoram o dia do seu santo padroeiro pelo menos uma vez por ano, data que é assinalada, sempre que a disponibilidade monetária o permite, por festejos que se prolongam durante um ou mais dias. A animação desenvolve-se geralmente em torno do templo, por vezes em estruturas especialmente construídas para o efeito, revertendo as receitas em benefício de obras sociais paroquiais. O momento mais importante da celebração é a missa em louvor do santo, continuada pela respectiva procissão: a imagem sai então do altar para cima do andor e, seguida pelo pároco, pelos populares e pela banda filarmónica que toca a marcha solene, percorre um determinado percurso que culmina no templo.
Porém, existem certos cortejos religiosos que se caracterizam pela concentração de populares que reúnem, a maior parte dos quais proveniente de diferentes povoações, vizinhas ou distantes, mas que prestam culto a uma mesma imagem sagrada. A estes cortejos convencionou-se dar o nome de “romarias” (etimologicamente, “ir a Roma”, a procissão mais antiga) e, ao templo para o qual confluem, “santuários”.
A principal finalidade de qualquer romaria é o pagamento de uma promessa colectiva, sendo o seu cumprimento concretizado através da própria deslocação dos fiéis em direcção ao respectivo santuário, que assim se manifesta como um verdadeiro pólo de atracção que é preciso vencer, muitas das através de um caminho sinuoso, extenuante e quase inacessível. Em Ferreira do Zêzere, apenas a Igreja de Nossa Senhora do Pranto de Dornes é considerada lugar de santuário, ao qual afluem anualmente vários “círios”, isto é, grupos de romagens compostas pelos habitantes de várias povoações e que visitam o templo em colectivo. De acordo com José Leite de Vasconcelos, a designação de círios (aplicada a romagens do mesmo tipo em outros santuários da Estremadura) deve-se ao facto de, inicialmente, e ainda no começo do século XX, cada grupo de romeiros transportar o resíduo do círio pascal que ardera durante a Semana Santa na igreja paroquial da respectiva povoação. De facto, na sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Pranto de Dornes, ainda se conservam, guardados nas respectivas caixas de madeira mas deficientemente identificados e datados, os círios de algumas das povoações que participam nesta romaria.


Altar-mor da Igreja de Nossa Senhora do Pranto, em Dornes

Na documentação antiga relacionada com o Concelho Ferreira do Zêzere, surgem algumas anotações referentes às romarias a Nossa Senhora do Pranto, de que são exemplo os apontamentos de Frei Agostinho de Santa Maria no seu Santuário Mariano (1712): «Tornando pois à historia da Senhora de Dornes ou do Pranto, como hoje he invocada, a primeyra igreja, que edificou Guilherme de Pavia por mandado da Santa Rainha, serve hoje de capella mór ao templo, que depois se lhe edificou. Porque pelos annos de 1453, reynando em Portugal El-Rey D. Affonso o V, sendo commendador daquela commenda Gonçalo de Sousa & vendo a pequenez daquella casa, levado do zelo da honra de Nossa Senhora se resolveo a crescentarlha mais, para que tambem pudessem caber nella os muytos que continuamente vinhão a venerar aquella sagrada imagem da Senhora. (…) Ha naquella casa alguns quarenta cirios de varias Irmandades de differente terras & alguns delles de cera fina, & o mais tem a dez & a quinze arrobas de pezo cada hum. Cada huma destas terras vem todos os annos em solenne procissão àquella Senhora, aonde lhe fazem festa com missa & sermão, & deixão grandes offertas».
Actualmente, os círios de Dornes concretizam-se entre a Segunda-Feira de Pascoela e o 3º Domingo de Setembro, sendo o cortejo religioso organizado do seguinte modo: na manhã do dia estipulado, os romeiros concentram-se na igreja paroquial da sua povoação. Aí, o pároco celebra uma missa e, em seguida, os participantes iniciam, em ritmo lento, a viagem em direcção a Dornes. À frente, junto do pároco, vai o pendão (geralmente com a imagem da Senhora do Pranto e o nome da freguesia bordado) erguido por um dos organizadores do círio. A cerca de 2 quilómetros de Dornes, ao longo da estrada que se desenvolve do Casal da Mata até ao Santuário de Nossa Senhora do Pranto, inicia-se a Via-Sacra, formada por 14 cruzeiro de pedra, o penúltimo dos quais se ergue à entrada da Vila. Junto de cada uma das estações as pessoas param para rezar, ritual que faz parte do cumprimento da promessa. Chegados à Igreja de Nossa Senhora do Pranto, é realizada uma missa campal no adro do templo, finda a qual os devotos permanecem no interior da igreja rezando e cumprindo votos particulares.
Por fim, refira-se que, para além de Dornes, também a Capela de São Pedro de Castro constituiu, no passado, um verdadeiro local de santuário, mas actualmente as antigas romarias já não se concretizam. A estes cortejos se referem as Memórias Paroquiais do Padre Luís Cardoso: «S. Pedro de Castro, era hum oiteyro junto do Rio Zezere que administra o fabricario e a provem com esmolas que lhe dam os romeyros que a esta concorrem. (…) A ermida de S. Pedro nos tempos passados acolhia muitas romagens por todo o anno, mas principalmente em dia do seu santo, em dia de S. Miguel e em dia de Todos os Santos».

O Culto das Imagens

Ex-voto, existente na Capela de São Pedro de Castro, em Ferreira do Zêzere

O Culto das Imagens remonta, na Península Ibérica, ao tempo da antiga Lusitânia quando, por influência celta e cartaginesa, se adoravam certas divindades protectoras, associadas aos elementos naturais e às quais eram atribuídas determinadas virtudes. Com a romanização e, mais tarde, com a propagação do Cristianismo, muitas dessas divindades pagãs manter-se-iam sob a égide de outras entidades ao ponto de, actualmente, permanecerem certas reminiscências ancestrais nas manifestações religiosas populares, de que são exemplo o culto dos Santos e, em particular, de Maria.
Essa afinidade entre os ritos gentílicos e a liturgia católica reside, precisamente, no carácter simbólico da imagem venerada. Isto porque, independentemente da sua representação física, um santo é sempre um símbolo do sagrado, que encerra todo um conjunto de valores ético-sociais nos quais a comunidade se revê e que, por essa razão, a ele recorre de forma a assegurar a sua protecção divina. Por sua vez, tal carácter místico deriva, não só, das narrativas eclesiásticas que se lhe encontram associadas, mas advém igualmente dos mitos peculiares que frequentemente se geram em torno de uma imagem sagrada e que, de geração em geração, vão sendo transmitidos, em narrativas que se encontram para além dos limites da história factual.
No domínio da religião popular e, em particular, no Concelho de Ferreira do Zêzere, são frequentes as lendas que relatam os acontecimentos fantásticos operados por invocação de um determinado santo, e que geralmente se relacionam com o surgimento do povoado ou da respectiva capela onde este é cultuado. Tal é o exemplo da imagem de Nossa Senhora do Pranto, cujo aparecimento justificaria o desenvolvimento da Vila e da Igreja de Dornes naquele mesmo lugar, ou da imagem de Nossa Senhora da Graça, que surgiu no morro onde a respectiva igreja de Areias viria a ser construída. Estas narrativas foram registadas por Frei Agostinho de Santa Maria no seu Santuário Mariano mas, por serem demasiado extensas, não as vou aqui transcrever, referindo apenas que, para além destas duas imagens, o religioso se reporta aos inúmeros milagres testemunhados por invocação de Nossa Senhora da Orada (N.S.ª da Orada; F. de Beco) e de Nossa Senhora da Encarnação (Cumes; F. de Chãos), descrevendo com igual paixão a Igreja de São Luís das Pias ou a Capela de Nossa Senhora do Desterro (Alqueidão; F. de Pias).
Por sua vez, José Leite de Vasconcelos, na sua Excursão Extremenha de Tomar a Dornes (1895), reporta-se a um interessante costume religioso, em tempos praticado na Capela de São Saturnino, pequeno ermitério situado na Serra da Guimareira, na Freguesia de Areias: “ouvi falar de quem está doente de sezões (?) rouba três telhas a qualquer casa, e vai pô-las ao pé do Santo [São Saturnino], cuidando que sara; chamam-lhe por isso o ladrão das telhas. É preciso que as telhas sejam furtadas, e sem o dono saber; se este souber, ou se as telhas forem dadas ao doente, o rito de nada serve”. De facto, devido ao seu carácter virtuoso, a generalidade dos santos é invocada por motivo de doença, actuando a imagem como intercessora da fé ou esperança do crente na cura do mal. O pedido de auxílio é geralmente reforçado por meio de um objecto simbólico – muitas das vezes um molde de cera da parte do corpo afectada pela doença – e por um papel escrito – o “requerimento” – no qual é mencionado aquilo que se deseja. Simultaneamente, o crente compromete-se a oferecer um determinado rito, objecto ou soma de dinheiro caso o seu pedido venha a ser atendido e, se a cura vier a ser processada, é necessário fazer cumprir a promessa, entregando à imagem o que lhe foi prometido.
Aos objectos assim oferecidos convencionou dar-se o nome de Ex-votos, expressão latina cuja fórmula completa (Ex voto donatorum) significa “dado na sequência de um voto”. Relativamente a este costume religioso, mencione-se que, a partir do século XVII, se desenvolveu o hábito de representar, em tabuinhas pintadas, a história da doença e da sua cura. Nestas pequenas composições, geralmente depositadas junto do altar da imagem a que se pediu auxílio ou na sala de sacristia, surgem representados o doente, deitado e rodeado por médicos ou familiares, e o santo, pairando nos ares, ao mesmo tempo que um texto explica a quem se referem as personagens. Tal é o exemplo das sete tabuinhas pintadas, existentes na Capela de São Pedro de Castro, em Ferreira do Zêzere. Os registos são alusivos a milagres operados pelo Santo entre os séculos XVII e XIX, sabendo que em algumas destas peças a mancha pictórica já quase desapareceu por completo. Para além destes ex-votos, existem ainda, na mesma capela, três gravuras muito interessantes onde S. Pedro é representado.

Nossa Senhora das Candeias, no lugar do Mourelinho, Igreja Nova do Sobral

No que se refere ao culto particular de Maria, diga-se que esta representação sagrada não corresponde necessariamente à Virgem Maria, Mãe de Jesus, mas simplesmente a Nossa Senhora, designação associada a um determinado nome, lenda ou escultura, através da qual se manifesta um poder particular, independente da personagem católica que representa. Assim sendo, a cada Senhora está relacionada uma determinada virtude, definidora do nome do orago, até porque, tipologicamente, todas as imagens são semelhantes entre si.
As Senhoras populares, de que são exemplo os cultos da Senhora da Saúde (Pereiro; F. de Areias), Senhora da Luz (Vila Verde; F. de Areias) ou Senhora das Candeias (Mourelinho; F. de Igreja Nova do Sobral), praticados no Concelho de Ferreira do Zêzere, aparecem repetidamente representadas com faces sorridentes, emolduradas por fartas e belas cabeleiras, e transportando nos braços um menino. As suas vestes são amplas, de verdadeiro tecido ou esculpidas no material de suporte da imagem, o que contribui para lhe conferir um perfil triangular.
Originalmente, o culto de Maria encontra-se associado ao valor da Natalidade, sobretudo nas imagens da Senhora do Ó ou da Expectação (Sobral; F. de Igreja Nova do Sobral), representada com o ventre proeminente e invocada durante a gravidez, e da Senhora do Leite (Igreja Matriz do Beco), representada com um seio descoberto e invocada durante o aleitamento. Porém, a Senhora é também invocada em momentos de tristeza, recorrendo os fiéis a cultos específicos de forma a expiar a sua agonia. Uma dessas representações é a da Senhora do Pranto, Piedade ou das Dores (Igreja Matriz de Dornes), culto incrementado na sociedade portuguesa renascentista e dirigido à imagem de Maria com o Filho morto sobre os joelhos.
A partir do século XVII, o culto Mariano conheceu grande projecção, multiplicando-se as representações de Nossa Senhora alusivas aos mais diferentes episódios da vida da Virgem Maria, ao mesmo tempo que se desenvolvem diversos cultos litúrgicos, cujo mais importante é o da Imaculada Conceição. Em Ferreira do Zêzere, a par desta liturgia (Capela de N. Sr.ª da Conceição, Ereira, Paio Mendes), mantêm-se os cultos de Nossa Senhora da Graça (Igreja Matriz de Águas Belas e de Areias), Nossa Senhora da Encarnação (Cumes; F. de Chãos) e de Nossa Senhora da Purificação (Frazoeira; F. de Dornes).

Os Pelourinhos


Pelourinho de Águas Belas


Em qualquer povoado, existe sempre um lugar central onde decorrem os eventos essenciais da vida comunitária e é aí que geralmente se localiza o principal equipamento rural. A igreja paroquial, a capela, o pelourinho, a fonte e o busto de um ou outro benemérito, são geralmente erigidos no centro da povoação, definido pelo respectivo largo. Aí se reúnem os aldeãos nos dias de mercado, de feira ou de festa dedicada ao santo patrono, datas que se revestem de um carácter excepcional em relação à rotina quotidiana.
Tal como já tive a oportunidade de referir em crónicas anteriores, os cruzeiros, alminhas, fontes e pequenos templos de expressão rústica multiplicam-se um pouco por todo o concelho de Ferreira do Zêzere, muitas das vezes fruto da iniciativa popular. Tal dispersão deve-se ao tipo de povoamento próprio da região, em que os núcleos populacionais se sucedem numa continuidade pouco definida, pelo que, apenas para as sedes de freguesia do concelho, se pode falar da existência de um autêntico lugar central, ou seja, de um largo comunitário verdadeiramente assumido. Aí, o largo tende a confundir-se com o adro, ou seja, com o espaço amplo que se desenvolve imediatamente em torno da igreja matriz e que é ocupado pelas supracitadas actividades de expressão comunitária.
É esse o resultado do carácter agregante do templo sobre a comunidade, e que se corporiza igualmente na edificação dos mais distintos monumentos de expressão e necessidade públicas, de que são exemplo os pelourinhos. Um Pelourinho define um marco jurisdicional, geralmente colocado em lugar público, por ser aí exercida a justiça local. Por esta mesma razão, encontra-se associado aos mecanismos de administração territorial, surgindo junto da câmara, tribunal, cadeia ou forca, quando não se confundia com esta última.
Tal era o caso do hoje extinto pelourinho da Vila de Ferreira do Zêzere, o qual, segundo António Baião, foi instituído em 1513, a pedido de El-Rei D. Manuel I, junto da forca da mesma vila. Mais tarde, por volta de 1765, o monumento seria transferido para o lugar de Santo António, próximo do antigo edifício dos Paços do Concelho. Também o pelourinho de Pias foi erigido junto das casas da câmara e da cadeia, na praça da antiga vila, onde ainda hoje aí se encontra. De acordo com Carvalho da Costa, Pias foi convertida em vila por carta de D. João III, datada de 25 de Fevereiro de 1534, pelo que o respectivo pelourinho deverá ter sido instituído sensivelmente nesta altura. A este monumento se refere o Dr. Pedro Álvares, no seu Tombo da Mesa Mestral, do seguinte modo: «[este pelourinho] é de uma coluna alta de pedra com sua vasa e degraus de pedraria e por cimalha uma figura de homem.»

Pelourinho das Pias


De facto, o pelourinho de Pias trata-se de uma obra talhada em pedra calcária, elevada sobre um pódio de três degraus, sendo o fuste, cilíndrico e liso, rematado por um capitel compósito, no qual se parece ainda vislumbrar, esculpida na cantaria, a tal figurinha de homem a que alude o Dr. Pedro Alvares. Porém, a cantaria deste monumento apresenta-se bastante erodida devido à acção dos agentes atmosféricos e às vicissitudes do tempo, pelo que grande parte da informação escultórica da cimalha se encontra desgastada, tendo perdido muito do seu pormenor. Por sua vez, no pódio detectam-se várias zonas de fractura.
Mas, na região ferreirense, para além do pelourinho de Ferreira do Zêzere e de Pias, foi igualmente erigido um outro, no antigo Morgado de Águas Belas, junto à quinta dos senhores destas terras. De acordo com António Baião, Águas Belas foi convertida em morgado a 6 de Dezembro de 1356, tendo então recebido esta herdade Rodrigo Álvares de Pereira, irmão consanguíneo de D. Nuno Álvares de Pereira e filho de D. Álvaro Gonçalves de Pereira, com todas as suas dependências, senhorio, couto, honra, jurisdição e padroado da igreja de Nossa Senhora.
Não se sabe ao certo quando terá sido instituído o correspondente pelourinho, mas este ostenta ainda no fuste cilíndrico o brasão de armas dos Pereiras, com a sua cruz de Calatrava no escudo, sobrepujado de coroa aberta. O monumento, que se eleva sobre um pódio de três degraus, talhado em pedra calcária, é rematado em ábaco, a que se sobrepõe uma semiesfera de talhe muito grosseiro. A cantaria encontra-se enegrecida, não só devido à acção dos agentes atmosféricos, mas igualmente em virtude da deposição de poeiras e fuligens várias, resultantes do tráfego automóvel que circula na estrada alcatroada que passa junto ao pelourinho. Por fim, registam-se ainda sobre a superfície pétrea fenómenos de colonização biológica, onde os líquenes são os principais agentes colonizadores. Não obstante, o monumento e correspondente enquadramento foram reabilitados no decurso de um conjunto de intervenções camarárias, desenvolvidas por volta de 1980.

As Fontes

Fonte do "Milagre das Bilhas", nas Pias

Factor da maior importância na génese dos primeiros núcleos de povoamento rural, desde sempre que a água se assumiu como um elemento precioso na vida da comunidade aldeã, cumprindo diferentes funções. Em primeiro lugar, a água é utilizada para dessedentar os homens e os gados, sendo por isso comum a multiplicação de Fontes ao longo das bermas dos caminhos que orlam e atravessam os vários povoados do Concelho de Ferreira do Zêzere.
A principal finalidade de qualquer fonte comunitária é a de facilitar o provimento, recolha e utilização da água, quando esta não se encontra disponível de outro modo. Directamente abastecidas a partir de nascentes naturais, as estruturas fontanárias eram inicialmente muito simples, resumindo-se praticamente às fontes de chafurdo ou fontelas. Partindo da nascente, o pequeno curso de água crescia e, por entre vales e serranias, dava origem a ribeiras de caudal mais ou menos significativo, de acordo com o ritmo sazonal que lhe era imposto. Da sua presença dependia a irrigação das terras de cultivo, sendo a água um sustentáculo indispensável à vistosa policultura que caracteriza a região ferreirense, hidrograficamente rica.
Mas as fontes mais importantes eram, sem dúvida, aquelas cujas águas encerravam propriedades curativas e milagrosas. Em 1712, Frei Agostinho de Santa Maria, no seu Santuário Mariano, referia-se à Fonte do Casal dos Nabos, localizada perto da Ermida de Nossa Senhora da Orada, na Freguesia do Beco: “He tradição tambem antiga que entre esta ermida da Senhora [Ermida de Nossa Senhora da Orada] & hum casal, a que dão o nome do Casal dos Nabos, ha huma fonte, da qual em algum tempo correo della azeyte. E referem que huma mulher virtuosa & muyto devota da Senhora, em neccesidade que padecia, tirára daquella fonte varias vezes azeyte, o qual repartido por varias partes obrára Deos com elle grandes milagres & maravilhas, como foy em hum homem, o qual tinha hum cancro em os peytos cousa muyto disforme, & que untando se com este milagroso azeyte lhe cahira ou se secára & que ficára são e sem lesão alguma. E referem pessoas de supposição & fidedignas, que hum Dom Prior de Thomar tendo noticia das grandes maravilhas que com o azeyte da Senhora se obrava, fora com muyta gente nobre da mesma Villa de Thomar a ver aquella maravilha da fonte.”
Por sua vez, o Dicionário Corográfico de Pinho Leal (1873-1882), cita algumas passagens do Aquilégio Medicinal, relativamente a certas fontes e poços do Concelho de Ferreira do Zêzere: “Há na vila das Pias uma fonte chamada do Arco de Vila Verde, que lança grandíssima abundância de água, tão delgada, que gasta as pedras dos seus ductos e é de excelente virtude para os achaques de pedra e areia. A que chamam do Alqueidão de Vila Verde é muito leve e delgada, e de grande virtude para os achaques de pedras e areias, segundo a voz comum e a observação dos médicos. O poço no caminho de Jamprestes para os Pinheiros (...) cuja água sara admiravelmente as chagas da boca, tomando bochechas dela. O poço a que chamam da Silveira, cuja água tem tal virtude em fazer lançar as sanguessugas da garganta, que bebendo-a os gados em que elas têm entrado, logo as faz cair”.
Esta tendência para sacralizar a água manteve até aos dias de hoje e, em Ferreira do Zêzere, várias são as fontes em que foi afixado um painel azulejar alusivo a um determinado santo protector. Citem-se, a título de exemplo, as fontes de: Sto. António (Areias), S. Pedro (Cidral), S. João (Farroeira), S. Pedro (Farroeira), S. João Baptista (Pereiro) – na Freguesia de Areias –; São Silvestre (Portinha, Freguesia de Ferreira do Zêzere); Nossa Senhora de Fátima (Igreja Nova do Sobral); Milagre das Bilhas (Pias).
A grande maioria das fontes actualmente existentes no Concelho, foi construída durante a primeira metade do século XX, tendo já contabilizado um total de 41 destes elementos. Do ponto de vista arquitectónico, as estruturas fontanárias tratam-se de equipamentos comunitários muito simples, constituídos por edículas geralmente isoladas ou, por vezes, adossadas a muros ou paredes de uma outra construção. O sistema hidráulico que encerram é igualmente elementar, derivando nalguns casos do abastecimento directo de nascentes naturais, sendo o provimento de água efectuado a partir de uma bica. Na maioria das fontes, o jorro é projectado para uma pia, mas existem algumas estruturas dotadas de lavadouro, elemento que desempenhava importantes funções de higiene e limpeza públicas, pois era aí que as mulheres se deslocavam a fim de lavar a roupa da semana, quando não o podiam fazer no rio.
Em Ferreira do Zêzere existem ainda vários lavadouros públicos, que hoje em dia raramente são utilizados e que se encontram, nalguns casos, arruinados. Citem-se, a título de exemplo, os tanques de lavagem do Cidral, Farroeira, Menexas, Pereiro, Telhadas, Vila Verde (todos eles na Freguesia de Areias), Salgueiral (em Ferreira do Zêzere) e Paio Mendes.

Tanque de lavagem do Salgueiral, em Ferreira do Zêzere

Por fim, refira-se que a maioria das estruturas fontanárias foi construída com o apoio camarário ou das juntas de freguesia locais, como o comprovam as epígrafes que, por vezes, são justapostas à edícula, e nas quais surge registado o ano de construção da fonte.
Fonte do Casal da Farroeira (Areias): “1939. Fonte do Casal da Farroeira, feita pela Câmara Municipal, com a comparticipação do Estado e pelo Povo do Lugar”.
Fonte de S. Pedro, Farroeira (Areias): “Fonte Pública da Farroeira. Reconstruída P Povo, Câmara e J. F. Areias. 1992.” Fonte das Meneixas (Areias): “Fonte das Meneixas. CMFZ em 29/8/1943”.
Fonte da Vitória, Pereiro (Areias): “Fonte da Vitória. 2/7/1935. Reconstruída CMFZ Junta de Freguesia 1992”.
Fonte do Vale da Cabrieira (Areias): “Fonte do Vale da Cabrieira. Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere e Junta da Freguesia do Beco. 21 de Novembro de 1937”.
Fonte das Telhadas (Areias): “1938. Fonte das Telhadas de Ferreira do Zêzere”.
Fonte do Tojal (Areias): “1937. Fonte do Tojal. Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere e Junta de Freguesia de Areias.”
Lavadouro de Ferreira do Zêzere: “C.M. 1930 F.Z.”

Chafariz da Praça Dias Ferreira, na Vila de Ferreira do Zêzere

No entanto, a construção de um fontanário pode igualmente dever-se à acção de um benemérito ou estar associada a um determinado acontecimento importante para a comunidade.
Fonte do Pelourinho (Águas Belas): “1940. Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere. Antiga povoação doada em 1190 por el-rei D. Sancho I a Pedro Ferreira o fundador da vila de Ferreira do Zêzere e em 6 de Setembro de 1356 instituída em morgado na pessoa de D. Rodrigo Alvares Pereira irmão de D. Nuno Álvares Pereira cujos descendentes conservaram o seu senhorio até 29 de Dezembro de 1785 e sede da antiga vila e termo de Águas Belas. Sic Tran Sit Gloria Mundi!”
Fonte da Igreja de Dornes: “Dos paroquianos de Dornes como prova de gratidão no décimo aniversário de presença e serviço entre nós do pároco padre Artur Mendonça das Neves. Dornes 12 de Outubro de 1988.”
Chafariz da Praça Dias Ferreira (Ferreira do Zêzere): “Oferecida por Maria Dias Ferreira da Silva em memória de seu pae Joaquim Dias Ferreira MCMXLVI”.
Fonte do Salgueiral (Ferreira do Zêzere): “1937. Fonte e Lavadouro do Salgueiral. Construídos por iniciativa e à custa dos beneméritos Ex.mos S.es D. Joaquina Costa Dias Ferreira e seu marido Manuel António Dias Ferreira“.
Fonte de N. Sr.ª de Fátima (Igreja Nova do Sobral): “Igreja Nova 8/7/1973. Viandante, ao beberes desta água, irmana-te na gratidão dos igrejanovenses aos doadores do terreno onde se fez a sua exploração, Sr. Marcelino Antunes Sebastião e sua esposa D. Brigite da Conceição Sebastião.”
Fonte do Milagre das Bilhas (Pias): “CMFZ. Por iniciativa de José Batista e subsídio da casa de Ferreira do Zêzere em Lisboa foi oferecido este fontanário. Pias 1959. Arqtº Marciano Baptista Rodrigues.”

Cruzeiros e Alminhas

Um dos cruzeiros da Via Sacra de Dornes

Os costumes religiosos são ainda bastante influentes no concelho de Ferreira do Zêzere, advindo este carácter da forte ruralidade concelhia, que marca igualmente o receio com que as comunidades locais encaram os estranhos e tudo aquilo que para elas é novo. De facto, para o aldeão o desconhecido provém sempre do exterior, que ameaça, com todos os seus perigos, o pequeno povoado. Como forma de defesa, a comunidade fecha-se sobre si mesma e cria, no seu interior, um espaço seguro. É essa a origem dos vários cruzeiros e “alminhas” que se erguem na berma dos caminhos, construções de forte carácter simbólico que orlam a passagem dos viandantes, sugerindo a totalidade do espaço segurizante da comunidade.
Para José Leite de Vasconcelos, esta preocupação para com a protecção mística dos viandantes remonta à época romana. Era então costume erigir nas bermas dos caminhos uma aedicula ou uma ara em honra dos lares compitales, divindades que, em algumas inscrições, se chamam de Bivii, Trivii ou Quadrivii, consoante o número de vias convergentes num determinado local. Desta tradição devem ter derivado os Cruzeiros e, posteriormente, os pequenos monumentos de concepção popular a que se convencionou dar o nome de Alminhas.
Na região de Ferreira do Zêzere, existe um sólido conjunto de catorze Cruzeiros, constituintes da Via Sacra que se desenvolve desde o Casal da Mata até Dornes, terminando junto da escadaria da igreja de Nossa Senhora do Pranto. Do ponto de vista arquitectónico, cada cruzeiro é constituído por um pódio de três degraus, sobre o qual se eleva uma base quadrangular, em cuja face frontal foi aplicado um painel azulejar referente a cada um dos passos da Paixão de Cristo. O revestimento azulejar é executado nos tons de azul e branco, num total de trinta unidades por painel. Sobre esta base, eleva-se uma cruz de Cristo, a uma altura de cerca de 4 metros, medindo a partir do nível do solo. Junto ao primeiro cruzeiro, duas epígrafes marcam o início da deambulação. A primeira alude ao ofertante: Esta via sacra foi oferecida ao santuário de Nossa Senhora do Pranto pelo Exmo. Senhor Durval do Rosário Marcelino e esposa. Eterna gratidão da paróquia de Dornes. Já a segunda mistifica o carácter sagrado do referido percurso: Pára e pensa. As 14 cruzes que vais visitar lembram-te o maior acto da história da humanidade. Um Deus-Homem morreu por ti.
De facto, as catorze estações da Via Sacra representam os episódios mais marcantes da Paixão e Morte de Cristo. A tradição, de origem franciscana, reproduz a Via Dolorosa, ou seja, o percurso feito por Jesus em Jerusalém, desde o tribunal de Pilatos até ao Calvário. Este culto foi criado no século XV, tendo recebido modificações sucessivas até ao estabelecimento da sua forma final, fixada pelos papas Bento XIV e Clemente XII, entre 1731 e 1742. Em Portugal, a devoção da Via Sacra foi instituída na segunda metade do século XVI e, ainda hoje, o ritual consiste em percorrer, assim como Jesus, as catorze estações que recriam os momentos da Paixão, parando em cada uma delas para meditar e rezar. No que se refere ao Culto das Almas e do Purgatório, este foi aceite pelo Papado desde o princípio da Cristandade, mas a sua existência apenas foi decretada a partir do II Concílio de Lião (1274). Durante os séculos XIV e XV o culto é reforçado e, apesar da contestação Protestante operada na centúria seguinte, o Concílio de Trento (1545-1563) vem a reafirmar a existência do Purgatório. Pouco tempo depois é criada a Confraria das Almas, órgão espiritual que chegou a Portugal em meados do século XVII. A pouca repercussão do Protestantismo no Reino levaria a que o Culto das Almas tivesse grande aceitação e popularidade entre os portugueses, propagando-se rapidamente.

"Alminha" existente na Igreja Nova do Sobral

Neste contexto, surgiram as primeiras “alminhas”, monumentos de expressão artística popular, mandados erigir na sequência de um voto ou de determinado acontecimento, como relatam as epígrafes que, por vezes, lhe são justapostas. As “alminhas” são geralmente constituídas por um nicho – que encerra uma imagem de vulto ou um painel azulejar – alusivo a um determinado santo protector, embora na sua forma mais simples se possam resumir a um simples marco crucífero. Perante uma “alminha”, o crente reza pelas almas do Purgatório, sendo o seu pedido reforçado por meio de uma oferenda: uma moeda na caixa das esmolas, um ramo de flores, um objecto de cera ou uma fotografia.
Estes monumentos disseminam-se um pouco por todo o concelho de Ferreira do Zêzere, mas talvez o mais pitoresco seja, em minha modesta opinião, aquele que se conserva em Igreja Nova do Sobral. Este pequeno oratório, que também é fonte, foi erigido no ano de 1957, na sequência da visita da imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima à referida povoação. Por essa razão, o nicho encerra um painel azulejar alusivo a Nossa Senhora, acompanhado de vários azulejos avulsos, nos quais se lêem quadras referentes às “alminhas”: Em frente dumas alminhas / Não há decerto ninguém / Que não recorde saudoso / As almas que Deus lá tem. [Azulejo Nº1] As alminhas dos caminhos / Com singeleza e com graça / Lembram o eterno destino / Ao viandante que passa. [Azulejo Nº2] Rezemos todos p’las almas / Pois quem é que lá não tem / Um parente ou um amigo / Um bom pai ou santa mãe. [Azulejo Nº3] A Virgem Nossa Senhora / Quando em Fátima poisou / Que rezassem pelas almas / Aos portugueses mandou. [Azulejo Nº4].
Merece idêntico destaque a “alminha” do lugar do Castelo, Freguesia de Ferreira do Zêzere, dedicada a Nossa Senhora da Paz. O oratório, erigido no ano de 1991, é dominado por um nicho de grandes dimensões, no interior do qual figura uma imagem de vulto da santa padroeira. Mas outros destes pequenos monumentos podem ser citados: como a “alminha” consagrada a Nossa Senhora do Rosário, erigida junto à antiga escola primária de Areias; ou o pequeno oratório instituído pelo pastor José Abreu, a 25 de Julho de 1965, na estrada que do Beco vai para Dornes; não esquecendo a já tão deteriorada “alminha” dedicada a Nossa Senhora de Fátima, construída junto à estrada de Areias para Pias.

Lagares de Vinho e de Azeite

Vista panorâmica sobre o lugar de Chãos

Na minha última crónica, referi-me às principais actividades produtivas a que a população Ferreirense se entrega, expondo alguns dos engenhos de irrigação e de moagem existentes no concelho. Retomando o tema da vida comunitária, analisarei, por ora, a importância dos Lagares de Vinho e de Azeite numa região de tão forte pendor rural. De facto, a exploração vinícola e olivícola possui ainda grande representatividade no Concelho de Ferreira do Zêzere. As vinhas e olivais concentram-se em torno dos núcleos habitacionais onde, a par das hortas, pomares e milheirais, ocupam os terrenos mais férteis.
Por essa razão, os lagares de vinho e de azeite sempre foram muito numerosos no Concelho de Ferreira do Zêzere, apresentando-se como duas das mais importantes fontes de sustento familiar e comunitário. O Lagar de Vinho surge como um equipamento anexo à casa de habitação, o que indica que a produção se destina quase exclusivamente ao consumo familiar. Funcionando na maioria das vezes como adega, a casa reservada ao lagar possui dimensões modestas e é dotada de poucas aberturas para o exterior, garantindo-se assim o isolamento necessário à boa conservação do vinho. Elemento imprescindível é o tanque de esmagamento da uva, onde o fruto, calcado a pé nu, é convertido em mosto, posteriormente reservado em cubas, dornas, potes ou barris.
Os mais antigos lagares de vinho existentes no concelho, inserem-se no contexto habitacional das grandes herdades regionais, como é o caso da Quinta das Valadas, na Freguesia de Areias, em que o Lagar e a Adega se assumem como duas construções distintas. Contrariamente ao fabrico do vinho, a obtenção de um bom azeite implicava destreza técnica e larga experiência no ofício, pelo que eram raras as unidades de exploração familiar. Geralmente existia um Lagar de Azeite por povoação, de carácter comunitário, ao qual os habitantes locais se deslocavam para moer a sua azeitona.
Até à segunda metade do século XX, predominaram na região de Ferreira do Zêzere os tradicionais Lagares de Varas, sendo comuns as unidades que dispunham de dois ou mais engenhos. O processo de obtenção do azeite era complexo e iniciava-se com o esmagamento da azeitona num moinho de galgas, o qual podia levar de uma a quatro mós verticais, geralmente accionadas pela força da água. A pasta assim obtida era disposta nas seiras, posteriormente empilhadas sob a vara, iniciando-se a prensagem através do aperto do fuso. As ceras eram então caldeadas com água aquecida no forno do lagar, o que ajudava o azeite a escapar do aperto. Por fim, a água ruça escorria para dentro de uma sucessão de depósitos denominados tarefas, sendo a última tarefa a mais delicada, pois consistia em escoar a água do fundo do reservatório de forma a evitar o menor desperdício de azeite possível.
Dos mais antigos lagares de varas existentes no concelho, a maioria foi industrializada – lagares do Escoural e do Rego da Murta [Freguesia de Areias] –, encontrando-se hoje abandonados e, em parte, arruinados – lagares do Açude da Laranjeira, da Quebrada do Meio [Freguesia de Chãos] e do Castelo de Paio Mendes [Freguesia de Paio Mendes]. Apenas o lagar de azeite de São Guilherme [Freguesia de Dornes] foi recuperado e adoptado a novas funcionalidades.
Vejamos em pormenor estes exemplos:
Lagar do Escoural: Junto da margem esquerda da ribeira de Ceras, ergue-se uma construção de grandes dimensões, que no passado serviu como lagar de azeite. Não obstante, e apesar de a estrutura preservar ainda, no seu interior, alguns dos engenhos industrializados empregues no esmagamento da azeitona e obtenção oleica, a actividade foi abandonada nesta unidade, que desta forma se vai lentamente degradando.
Lagar do Rego da Murta: Este antigo lagar de azeite localiza-se junto da margem esquerda da ribeira de São Domingos. Durante muitos anos, a estrutura preservou no seu interior as grandes varas de carvalho empregues no aperto das ceras. Mais recentemente, a produção foi mecanizada e industrializada, e as varas de madeira deram assim lugar a prensas metálicas. Porém, actualmente, também a produção de azeite foi abandonada nesta unidade.
Lagar do Açude da Laranjeira: Junto do açude da Ribeira dos Chãos, existe uma grande construção que hoje se encontra totalmente arruinada, mas que em tempos terá servido de lagar de azeite. De facto, num dos seus muros interiores, conservam-se ainda duas das cavidades onde entravam as varas de aperto do lagar. O imóvel, erigido em aparelho de pedra calcária e barro, era caracteristicamente dotado de poucas aberturas, possuindo cobertura em telhado de duas águas, constituídas por telha vã assente directamente sobre o ripado. Numa das extremidades da construção, existia ainda um moinho de galgas, onde a azeitona era macerada e transformada em pasta.
 
Lagar da Quebrada do Meio: Na aldeia da Quebrada do Meio existe uma construção arruinada, sobradada, que em tempos terá acolhido um lagar de azeite. O interior, bastante destruído, conserva ainda o grande fuso onde entrava a vara de aperto e que, na extremidade oposta, se ligava à parede do lagar. É igualmente visível o decantador que distribuía o líquido pelos vários depósitos e, aqui e além, sobrevivem vestígios de barris e tonéis arruinados.
Lagar do Castelo de Paio Mendes: No lugar do Castelo de Paio Mendes ergue-se um imponente edifício que, em tempos idos, funcionou como lagar de azeite, mas que hoje se encontra abandonado. Apesar de não ter sido possível visitar o interior do imóvel, e de acordo com os relatos orais recolhidos no local, o lagar do Castelo de Paio Mendes tratava-se de uma importante unidade de produção, sendo o azeite aí obtido distribuído por todo o concelho de Ferreira do Zêzere. De facto, junto dos muros exteriores da construção, ainda se preserva um grande número de galgas, factor indicativo da quantidade de engenhos que aí devem ter laborado.
 
Lagar de São Guilherme: Junto da ribeira de São Guilherme existe um antigo lagar de azeite, recentemente reconstruído com o apoio da Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere, onde chegaram a decorrer alguns eventos culturais. Da primitiva construção manteve-se a sua estrutura geral, de planta longitudinal, dotada de poucas aberturas e telhado em cobertura de duas águas que, pelo lado da entrada principal, descem sobre um pequeno alpendre assente sobre colunas. Conservam-se ainda algumas galgas, assim como o paredão onde encaixava a roda de copos que, ao girar, fazia mover o moinho onde era macerada a azeitona.

Azenhas de Água, Moinhos de Vento

Engenho de moagem de uma azenha outrora existente no lugar do Escoural

Na região de Ferreira do Zêzere, o sector primário desempenha ainda uma importante função entre os habitantes rurais, que ao longo de várias gerações aprenderam a retirar do cultivo dos campos, do pascido dos animais e da exploração florestal a sua principal fonte de sustento. Consequentemente, o casario tende a concentrar-se nas zonas mais férteis, disseminando-se em torno dos núcleos habitacionais os terrenos reservados a hortas, vinhas, pomares, milheirais e searas. Como a produtividade dos solos está directamente relacionada com a boa irrigação dos mesmos, facilmente se depreende da necessidade de existência, nessas terras de cultivo, de fontes de abastecimento hídrico, tais como ribeiros, nascentes ou poços, dos quais a água era primitivamente elevada por meio de engenhos manuais [cegonha ou picota], ou por meio da tracção animal [noras].
Deste modo, e sempre que possível, os terrenos agrícolas dispunham-se ao longo dos ribeiros, sendo a água conduzida, através de uma rede de canais, para o sistema de rega. Porém, a subida de caudal do Zêzere, originada pela construção da barragem de Castelo do Bode entre 1940 e 1950, destruiu grande parte do sistema de aproveitamento da água do rio com o recurso a açudes, cujas levadas, para além de suportarem a rega dos terrenos marginais, faziam ainda mover as Azenhas, engenhos hidráulicos utilizados na moagem dos cereais.
Tipologicamente, é possível distinguir entre Azenhas de Rio – movidas por rodas de propulsão inferior e empregues nos ribeiros de caudal mais significativo – e Azenhas de Copos – accionadas por uma roda de propulsão superior, solução que permitia o aproveitamento energético de pequenos cursos de água. São hoje muito raros no Concelho de Ferreira do Zêzere este tipo de engenhos, até porque a grande maioria dos exemplares remanescentes ou foi industrializada ou totalmente abandonada, sem contar com as construções que, edificadas junto das margens do Zêzere, ficaram totalmente submersas a quando da subida do leito do rio.
Não obstante, no lugar do Escoural [Freguesia de Areias], junto da margem esquerda da Ribeira de Ceras, preserva-se uma antiga azenha de rio que, apesar de abandonada, mantém no seu interior o engenho originalmente empregue na moagem do cereal. O curso de água da ribeira, desviado para uma caleira, era conduzido até às pás da roda existente por debaixo da casa da azenha, pelo que, a força motriz assim gerada, fazia trabalhar o engenho de moagem. A construção, em parte arruinada, foi erigida em blocos de pedra calcária, ligados por aparelho de barro, sendo a cobertura em telha vã.
Já no lugar da Ribeira do Brás [Freguesia do Beco], na margem direita da ribeira com o mesmo nome, preserva-se uma azenha de copos, actualmente remodelada. Apesar do primitivo engenho de moagem ter dado lugar a um equipamento eléctrico, a construção mantém a roda de copos, hoje disfuncional, mas que no passado era abastecida por um açude que recolhia a água da ribeira próxima.

Moinho de vento da Avecasta

Igualmente empregues na moagem do cereal eram os Moinhos, engenhos que se distinguem dos anteriores por serem movidos a vento, localizando-se geralmente em locais ermos e ligeiramente elevados, de forma a melhor aproveitar a energia eólica. No Concelho de Ferreira do Zêzere, preservam-se alguns exemplares deste tipo de engenhos, como é o caso dos moinhos de vento do lugar da Avecasta ou do lugar dos Matos, localizados na Freguesia de Areias.
Estes moinhos, construídos em estruturas giratórias de madeira de planta hexagonal, apresentam como particularidade o facto de poderem rodar em busca do vento, apoiando-se sobre um espigão e duas rodas de madeira, que giram sobre um caminho circular de lajes. De facto, os cinco moinhos de vento da Serra dos Matos, erigidos no cimo de um morro que se isola da paisagem envolvente pela sua maior altitude, são em tudo semelhantes ao moinho da Avecasta, com a excepção de, nestes exemplares, a cobertura se encontrar protegida por meio de uma chapa metálica. O conjunto evidencia sinais preocupantes de degradação, sintoma do estado de abandono a que se encontra votado. O moleiro, que regularmente aí moía o cereal, habitava próximo, numa pequena casa rústica construída no sopé da elevação. No seu ofício não encontrou continuidade...